“Foi na universidade que me encontrei e construí minha identidade, primeiro como LGBT e depois como negro”, afirma Eduardo
Durante 388 anos o Brasil teve sua economia entrelaçada com o trabalho escravo. E há apenas 21 anos, três leis nacionais foram criadas para gerar reflexão sobre questões raciais no Brasil.
Em 2003 a lei nº 10.639 colocou o “Dia da Consciência Negra” no calendário escolar, tornando obrigatório o ensino de história e cultura afro nas escolas. Em 2011 a lei federal nº 12.519 oficializou e acrescentou ao 20 de novembro o “Dia Nacional de Zumbi”. Em 2023 a lei nº 14.759 transformou a data em feriado nacional.
Mas o olhar para o movimento negro não deve se restringir apenas a essa data. É necessário olhar diariamente para a história brasileira, lembrar para nunca mais repetir. A memória de um povo é uma ferramenta importante para a construção de sua identidade e formação social. É a partir do olhar para o passado que a sociedade pode refletir o presente e construir um futuro digno, seguro, com equidade e inclusão para as populações que foram excluídas ao longo da história.
Neste 20 de novembro, “Dia da Consciência Negra”, a reportagem do Correio de Carajás conversou com Eduardo Nunes da Silva, professor de história, produtor cultural e ativista do movimento negro em Marabá, para falar e refletir sobre a data partindo da perspectiva de uma pessoa preta.
Professor de história, Eduardo tenta ser inspiração para seus alunos negros
CORREIO DE CARAJÁS: O que o termo “Consciência Negra” representa para você?
Eduardo Nunes da Silva: Ele é um convite não apenas para a população negra, mas para toda a sociedade. É um momento para refletir sobre a história, a memória e a contribuição da população negra na construção do Brasil. É também um chamado para combater o racismo estrutural presente na nossa sociedade.
É mais que um feriado, é um espaço essencial para o debate sobre o papel fundamental da população negra na construção do Brasil e para o enfrentamento do racismo e das desigualdades que ainda afetam milhões de pessoas no país.
Algumas pessoas defendem a ideia de uma ‘Consciência Humana’, mas essa seria válida apenas em uma sociedade ideal, onde igualdade e respeito fossem uma realidade. Como ainda não vivemos nesse cenário, a Consciência Negra é fundamental para refletir sobre essas questões, pensar em soluções e celebrar as conquistas e avanços da população negra ao longo dos anos.
CORREIO: Sabemos que uma das definições da palavra “consciência” é a capacidade do ser humano de reconhecer a realidade exterior ou interior. Considerando esse contexto – e falando sobre identidade –, quando você se entendeu como pessoa preta?
Eduardo Nunes da Silva: Foi na universidade que me encontrei e construí minha identidade, primeiro como LGBT e depois como negro. Achava que me reconhecia como negro naturalmente, mas essa identidade é um processo de construção. Não que eu não me visse como negro antes, mas a partir dos estudos africanos e afro-brasileiros, dos estudos raciais e do combate ao racismo, passei a entender a estrutura racial no Brasil e a me reconhecer nesse contexto.
A partir daí, passei a ter uma postura mais afirmativa da minha identidade, com mais segurança. Deixei meu cabelo crescer, o que foi como um experimento social. Observando as reações das pessoas, pude sentir na pele o racismo. Comecei a me reconhecer nos textos, a entender situações que antes não percebia como racistas.
CORREIO: Essa construção da identidade como pessoa preta passa pelo ambiente familiar? Como você vivenciou isso?
Eduardo Nunes da Silva: Minha família é interracial e eu a utilizo como parâmetro para observar a questão racial. Sempre presenciei piadas racistas vindas de primos mais claros. Eles, apesar de se identificarem como negros, não têm a mesma percepção da negritude que eu tenho hoje. Acreditam que racismo não existe, que é vitimismo.
Ao me aprofundar nos estudos, comecei a ressignificar minha história, percebendo que em algumas situações, como em empregos e relacionamentos, havia sofrido racismo sem me dar conta. Esse processo de se reconhecer como negro não é automático, é uma busca individual.
É um processo muito pessoal, cada um tem seu tempo e entendimento. Algumas pessoas talvez nunca cheguem a esse entendimento. Existe um texto que usa a metáfora do armário para falar sobre a ‘saída’ de diferentes ‘armários’, como o da negritude e o da homossexualidade.
CORREIO: Entendendo que o Dia da Consciência Negra é uma oportunidade de conscientização sobre o racismo, como você, um homem preto e LGBT, se sente recebido pela sociedade? Subestimado? Julgado pela aparência?
Eduardo Nunes da Silva: Já passei por várias situações de racismo, principalmente no trabalho. Já fui impedido de concorrer à vaga de vendedor por não ter o ‘perfil’ adequado, segundo a psicóloga. Enquanto outros candidatos brancos sem experiência conseguiam a vaga, eu, com formação superior, fiquei com a vaga de serviços gerais.
Após 8 meses, meu chefe, que também era negro, reconheceu meu potencial e me deu a oportunidade de concorrer à vaga de vendedor. A psicóloga, mais uma vez, resistiu, alegando que eu não tinha o perfil. Ela tentou de todas as formas me tirar da vaga, colocando outras pessoas para me substituir. Acabei desanimando e saí da loja.
Na infância, também sofri racismo, como não ser convidado para festas. Minha mãe, sempre protetora, tentava me confortar, mas eu já percebia as questões raciais por trás da exclusão.
Hoje em dia, sinto menos esse tipo de tratamento. Acredito que a afirmação da minha identidade contribui para isso. As pessoas tendem a ter mais cuidado ao lidar comigo.
CORREIO: Muito se fala sobre pessoas negras ocuparem espaços tradicionalmente dominados por pessoas brancas. Para você, enquanto historiador e produtor cultural, como é ocupar esses espaços sociais?
Eduardo Nunes da Silva: É uma luta constante preencher esses lugares. A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie fala sobre ‘os perigos de uma história única’. Muitas pessoas sofrem desse mal, de conhecer a história apenas pela perspectiva dominante. Ocupar espaços é dar voz a diferentes perspectivas, construir um mundo mais equitativo e diverso.
Mesmo dentro da universidade, existe racismo. É importante ver iniciativas como cursos voltados para pessoas negras em áreas como computação e programação, que ainda são dominadas por pessoas brancas. A falta de diversidade nessas áreas perpetua a visão de mundo de um grupo restrito.
Como produtor cultural, busco trazer um ponto de vista diferente, já que essas questões geralmente são abordadas por pessoas brancas, que nem sempre têm a sensibilidade necessária. A representatividade importa, seja no cinema, na literatura, em qualquer lugar.
Como professor, tento ser uma inspiração para meus alunos negros, oferecendo a atenção que eu não tive na minha formação. Acredito na importância da representatividade, de ver pessoas negras ocupando diferentes espaços.
CORREIO: Entendemos que é importante celebrar as conquistas da população negra, vê-las em posições de destaque é uma inspiração para outras pessoas. Neste “Dia da Consciência Negra”, o que você tem para celebrar?
Eduardo Nunes da Silva: Tenho muito orgulho de ser o primeiro professor da minha família, formado em uma universidade federal. É uma conquista importante para mim e para minha mãe, que sempre sonhou com isso. Ela, uma mulher negra, ocupou cargos de liderança em espaços tradicionalmente masculinos, como uma oficina mecânica, na década de 1990. É minha grande inspiração. Poder retribuir tudo o que ela fez por mim é motivo de grande orgulho.
Celebro também minhas conquistas recentes, como ter me tornado professor, ter conquistado o segundo lugar no estado no edital da Lei Paulo Gustavo com meu curta-metragem, como pessoa negra e LGBT.
Celebro ser fruto das cotas. Entrei na universidade por cotas e tenho orgulho disso. As cotas são uma política importante para garantir o acesso de pessoas negras à universidade, um espaço ainda muito restrito a pessoas brancas e de classes mais altas. As cotas me permitiram acessar a universidade e me reconhecer como pessoa negra. Esse é o meu motivo de orgulho neste 20 de novembro.
(Luciana Araújo) CORREIO DE CARAJÁS