Brasil possui um rebanho flutuante de cerca de 218 milhões de cabeças (Foto: )
Brasília – Os pecuaristas
brasileiros iniciam um novo ciclo em que nem tudo são flores. Maior produtor e
exportador mundial da comodity, o setor vai experimentar uma revolução em
poucos anos. Estudo da Embrapa prevê que até 2.040, dos atuais 1,4 milhão de
pecuaristas, cerca de 50% vão deixar a atividade.
A primeira revolução completa nesse ano, 42 anos.
Importador de carne bovina congelada da Europa nos períodos de entressafra até
os anos 80, o Brasil se transformou em meados dos anos 2000 no maior exportador
da commodity, posição consolidada hoje com 22% de todo o comércio
internacional. Uma revolução puxada pela profissionalização dos pecuaristas,
que, auxiliados pela pesquisa, introduziram tecnologias para melhorar a
alimentação, a genética, o manejo e a saúde dos animais.
Acompanhando a velocidade da tecnologia
proporcionada também nos anos 80 com a informatização de pesquisas e processos,
a segunda revolução da pecuária nacional pode ser ainda mais veloz, e profunda,
do que a anterior. Um estudo do Centro de Inteligência da Carne Bovina (CiCarne),
da Embrapa, aponta que até 2040, dos atuais 1,4 milhão de pecuaristas, cerca de
50% vão deixar a atividade. O CiCarne aponta que, na última década, houve “uma
deterioração crescente desses ativos, decorrente da forte pressão de custos”.
Por outro lado, há um desafio de adaptação, de mudança nos processos e modos de
produzir, para aumentar a eficiência e a competitividade, ao mesmo tempo em que
se promove a preservação do meio ambiente e a redução das desigualdades sociais
e econômicas.
“A agenda de sustentabilidade está vindo muito
rápido, por pressão da sociedade, por pressão do mercado consumidor. Se eu não
tenho como mostrar qual é a pegada de carbono que estou entregando, não vou
conseguir vender. Hoje estamos vendo a discussão internacional sobre a carbon
tax, a taxa de fronteira para emissões de carbono de produtos que entram na
Comunidade Europeia. Não adianta só rastrear o boi abatido, tenho que rastrear
os indiretos, tenho que dizer de onde veio esse bezerro, onde foi recriado e
engordado. É absolutamente inexorável, é irreversível o avanço dessa agenda”,
assegura José Carlos Pedreira de Freitas, coordenador executivo da Liga do
Araguaia, uma associação de 62 pecuaristas do Mato Grosso que busca se
antecipar às tendências do mercado.
Criadores da Liga do Araguaia, no Brasil Central,
começam a receber mais por pecuária mais sustentável| Foto: Divulgação / Liga
do Araguaia
Certificações para agregar valor e garantir mercado
à carne
A Liga do Araguaia funciona em cima de projetos,
custeados em parte pelos pecuaristas, em parte por algum parceiro. Em um deles,
envolvendo 24 fazendas e parceria com a Dow, num período de cinco anos a
tecnificação de 80 mil hectares de pastagens contribuiu para reduzir a idade de
abate dos animais, deixando de emitir 280 mil toneladas de CO2 equivalente.
Associados à Embrapa, pecuaristas criaram um selo de baixo carbono; em
cooperação com a JBS, outro projeto trouxe ferramentas de gestão profissional
às propriedades.
E há dois meses um grupo de seis fazendas assinou
contrato com o Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia (Ipam) para não
abrir áreas de cobertura nativa excedente ao obrigatório da Reserva Legal. É
dinheiro da Alemanha e da Noruega que “compra” a preservação das florestas por
um período de três anos de contrato. O pagamento pelo serviço ambiental varia
entre R$ 40 mil e R$ 400 mil por fazenda. “Tem todo um compliance que
a fazenda precisa atender. Daqui a três anos, o fazendeiro vai decidir se quer
continuar no projeto. Se não quiser, pode abrir a área e fazer o que quiser”,
relata Pedreira.
Há margem para aumentar lotação de bois por hectare
Para além das mudanças voltadas à produção mais
sustentável, existe ainda muita margem para ganhar em termos de produtividade.
O coordenador do CiCarne, Guilherme Malafaia, lembra que a lotação média da
pecuária no País é de 1,2 cabeça de boi por hectare/ano. “Sem inventar moda”,
diz Malafaia, “é possível dobrar isso com tecnologias disponíveis, como o bom
manejo dos pastos, planejamento e controle dos custos, suplementação da
alimentação, melhor genética, uso de sal proteinado, e cuidados com a boa saúde
animal”.
“Por incrível que pareça, a gente ainda tem um
grande volume de pecuaristas que não fazem nem custo de produção, para saber
quanto custa produzir a arroba de carne. A pecuária de extrativismo precisa ser
superada, por bem ou por mal. Porque as cobranças estão aí, como o acordo que o
Brasil assinou para reduzir as emissões de metano”, aponta o pesquisador. Ele
se refere ao Compromisso Global de Metano, assinado no ano passado junto com
outros 103 países, durante a COP26, para reduzir em 30% as emissões até 2030.
Dona de um rebanho flutuante de cerca de 218
milhões de cabeças, a pecuária de corte brasileira é marcada pelo contraste
entre bolsões de atraso de animais pés-duros, criados de uma forma quase
extrativista, até espécies de alta estirpe, terminadas em sistema de
confinamento. Dentre as ações de vanguarda, o associativismo tem feito a
diferença, não só na Liga do Araguaia, como em iniciativas similares envolvendo
cooperativas no Sul do País.
Modelo associativo tem cases de sucesso na
Cooperativa Aliança e na Aproccima
No início dos anos 2.000, vivendo numa região de
forte cooperativismo agrícola, pecuaristas de Guarapuava (PR) resolveram
experimentar o modelo associativo para explorar um nicho de carne de mais
qualidade e valor agregado. Os 35 criadores que fundaram a Aliança
Mercadológica Novilho Precoce, hoje Cooperativa Aliança, foram pioneiros num
sistema próprio de rastreabilidade do rebanho e de certificação da carne Angus.
Atualmente já são 135 cooperados que abatem 25 mil bovinos por ano. Em janeiro
inauguraram um frigorífico próprio em que foram investidos R$ 83 milhões de
reais.
Desde os primeiros anos, o modelo guarapuavano fez
escola. Inspirados pela iniciativa paranaense, pecuaristas gaúchos fundaram em
2002 a Aliança Mercadológica da Carne, que em 2006 passou a ser chamar
Associação dos Produtores Rurais dos Campos de Cima da Serra (Aproccima). A
união trouxe escala à produção e os associados passaram a negociar melhor as
carnes nobres com os frigoríficos e o varejo. Carlos Roberto Simm, um dos
fundadores, diz que a carne das raças europeias de gado segue o benchmark do
vinho. “São três nichos de mercado, com diferenciação de preço. Assim como existem
os vinhos de uva comum, depois os de varietais e de altíssima qualidade, nossa
carne segue a mesma lógica, e oferecemos os selos gourmet e prestigie, que é o
top do nicho do mercado”, afirma Simm, que tem seu próprio açougue em Caxias do
Sul, onde oferece mais de 90 cortes de carne bovina.
Pesquisa genética aponta animais que vão produzir
carne mais macia
As carnes da Approcima têm o selo de Boas Práticas
Agropecuárias (BPA) da Embrapa. É possível saber a identificação de cada
animal, sexo, raça, tipo de terminação, idade, peso da carcaça e percentual de
gordura. Para garantir as características valorizadas pelo consumidor, como
maciez e marmoreio, é feita nos Estados Unidos a análise do genoma das
matrizes. “Sob o ponto de vista genético, existem quatro pares de genes que
conferem maciez à carne. E há animais que não tem nenhum par. Estamos fazendo
essa análise e identificando esses animais que possuem todos os pares, o que
representa uma grande evolução no quesito qualidade. E daí a razão do selo
prestigie, vamos colocar isso como precificação”, diz o criador.
Carlos Roberto Simm antevê que a pecuária
brasileira seguirá dois caminhos paralelos. Do Centro-Oeste para cima, onde é
mais quente, as raças zebuínas rústicas produzindo animais que atendem o consumo
em massa, e mais para o Sul, no frio, a produção de carne de raças europeias de
alto valor agregado. O que não muda, independentemente da localização
geográfica, é a pressão pela profissionalização. “Estamos num processo
acelerado de mudança de paradigma. É um divisor de águas. Ou você é eficiente,
ou você está fora”, diz.
Para Pedreira, da Liga do Araguaia, essa é a
pecuária do futuro, que estará estabelecida daqui a cinco ou dez anos. “Há 5
anos, quando eu falava de carbono, o pessoal da Liga do Araguaia ria. Não sei o
que você está falando, esse negócio de mudança climática, aquecimento global,
achavam que era uma bobagem, uma coisa de governo. Hoje você abre o jornal,
está lá o caos no mundo todo”.
Associados, os criadores diminuem os custos para
monetizar ativos ambientais
Há grandes grupos empresariais que estão indo na
mesma direção, mas iniciativas como a da Liga do Araguaia têm um impacto
diferente. “Uma fazenda só, por maior que fosse, não poderia dar esse caráter
de fomento. A Liga tem um alcance muito mais amplo, tem uma dimensão social,
impacta as comunidades, a região onde a gente está atuando”. Monetizar ativos
ambientais envolve, também, custos elevados de implantação, por causa das
metodologias e certificações exigidas. “É um caminho longo e caro. Se não tiver
volume de ativo grande, você não consegue custear esse custo de transação. Você
tem que trabalhar com número de fazendas grandes. A própria liga, com 60
fazendas, precisa aumentar o número de fazendas engajadas pra gente ter mais
carbono, ter mais ativos para oferecer, e conseguir diminuir o custo de
transação”, enfatiza Pedreira.
A realidade é que, em pouco tempo, ficará quase
impossível se manter na pecuária com uma mentalidade “extrativista”. A maior
empresa de carnes do mundo, a brasileira JBS, avisou que a partir de 2025 só
comprará animais com rastreabilidade, ou seja, com “certidão de nascimento”. “A
JBS abate por dia 35 mil cabeças no Brasil e 150 mil cabeças no mundo. Se ela
avança nessa agenda, como é que o pecuarista diz ‘eu não vou fazer!’ Se não
fizer vai ficar fora, não vai ter acesso ao mercado”, enfatiza o gerente da
Liga do Araguaia.
Nesse jogo de mercado, os pecuaristas que fizerem a
lição de casa vão ter uma carta na manga, lá na frente. “Vai chegar a hora em
que poderemos dizer: Querem continuar comprando o meu boi? Tem que pagar um
prêmio, porque o meu boi tem pegada de carbono, boas práticas, certificação,
etc. E a JBS vai dizer lá fora, na Holanda, na Alemanha ou na China: Querem
comprar? Custa mais caro. Tem que pagar um prêmio por esses atributos”, aposta
Pedreira.
Tendências e perspectivas da pecuária bovina na
Amazônia brasileira
No estudo Tendências
e perspectivas da pecuária bovina na Amazônia brasileira,
dos pesquisadores da Embrapa Acre, Judson Ferreira Valentim e Carlos Mauricio
Soares de Andrade, nos últimos 30 anos a pecuária brasileira passou por notável
progresso tecnológico, o que resultou em aumento na produtividade, na
rentabilidade e na competitividade das cadeias produtivas no mercado nacional e
internacional. Como prova disso, entre janeiro e novembro de 2008 foi exportado
1,3 milhão de toneladas de carne bovina, com faturamento de US$ 5 bilhões, e 133
mil toneladas de produtos lácteos, com faturamento de US$ 484 milhões, segundos
dados de 2008 da CNA.
Outro indicador importante dos impactos positivos
do progresso tecnológico da agropecuária brasileira veio do Balanço Social da
Embrapa no ano de 2007, que reportou um lucro social de R$ 15,47 bilhões e a
geração de 114.965 empregos como resultado da análise dos impactos da adoção de
109 e 47 tecnologias, respectivamente.
A adoção de cultivares de forrageiras mais
produtivas, com maior qualidade de forragem e adaptadas às condições de clima e
solo das diferentes regiões do Brasil, teve papel importante neste processo.
Como exemplos, a adoção da Brachiaria brizantha cv. Marandu em 24,5 milhões de
hectares, do Panicum maximum cv. Tanzânia em 5,0 milhões de hectares e do P.
maximum cv. Mombaça em 10,5 milhões de hectares proporcionou benefícios
econômicos de R$ 5,6 bilhões em 2007.
Dentre os pontos abordados no estudo, os
pesquisadores destacam a introdução do Programa de Recuperação Melhoramento e
Manejo de Pastagens na Amazônia Legal (Propasto), uma iniciativa da Embrapa,
com o apoio da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e do
Banco da Amazônia, visava detectar as causas do declínio na produtividade das
pastagens plantadas e naturais e estudava tecnologias de manejo e recuperação
dessas pastagens e a adaptação de plantas forrageiras para a região. Este
projeto foi desenvolvido no período de 1976 e 1982 em todos os estados da
Amazônia Legal. O conhecimento gerado pelo Projeto Propasto, além de outros
resultados de pesquisas conduzidas posteriormente pela Embrapa e outras
instituições de pesquisa e ensino superior da Amazônia, permitiu a geração de
diversas tecnologias para o manejo adequado de pastagens na região.
Líder em produção e exportação de carne
Dados da Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e a Agricultura (FAO) apontam que o Brasil, além de ser o maior
exportador de carne vermelha, tem o maior rebanho bovino comercial do mundo,
com 217 milhões de cabeças. Do início dos anos 1960 até hoje, a produção no
País se multiplicou por sete. De 1,4 milhão de toneladas em 1961, para as
atuais 9,3 milhões (em 2021) e previsão de chegar a 11,2 milhões em 2025. Cerca
de 80% é para atender ao mercado interno. Nas exportações, as 159 mil toneladas
por ano, embarcadas em 1997, saltaram para 1,84 milhão de toneladas, em 2021.
Com informações da Embrapa.
Reportagem: Val-André
Mutran – Correspondente do Blog do Zé Dudu em
Brasília.
ZE DUDU