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FOLHAPRESS
BRASIL CORONAVÍRUS-FAMÍLIAS
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - Ryan Lucatto se arrumava para ir ao
enterro do avô, morto pela Covid-19 no dia anterior, quando o telefone tocou.
Era uma funcionária do hospital pedindo que algum parente fosse urgentemente
ver sua mãe, intubada na UTI. Entrou em pânico.
Onze dias antes já havia se despedido do pai, também acometido pelo
vírus. Em menos de duas semanas, o estudante de 20 anos e seu irmão Ruan, de
10, perderam três dos pilares da família para a doença. "Foi surreal.
Quando vi, os caixões estavam sendo cobertos por terra", diz.
Aconteceu há três meses, mas só agora ele está conseguindo assimilar a
tragédia. Em muitos momentos, teve que atropelar o luto e renunciar à emoção em
favor da razão. Hoje eles começam a reconstruir a vida morando com os tios, a
avó e uma prima em Jundiaí, interior de SP.
Ryan e Ruan estão entre os milhares de órfãos de uma pandemia que adoece
famílias inteiras e já matou meio milhão de pessoas no país. São crianças e
jovens que tentam superar a dor enquanto lidam com novos arranjos familiares e
questões de sobrevivência.
Muitas vezes, porém, a única coisa que queriam era um abraço. "É
minha maior saudade. Um abraço forte do meu pai de que vai ficar tudo bem, e um
carinhoso da minha mãe de que se não ficar ela está ali. E o abraço de avô que
cuida e dá risada junto", se emociona Ryan.
Existem três caminhos para órfãos como eles: serem apadrinhados por
parentes, se organizarem por conta própria, com os irmãos mais velhos cuidando
dos mais novos ou, em último caso, irem para abrigos e para adoção. O ideal é
que sempre fiquem no seio familiar, para evitar mais traumas e rupturas.
Mais de um ano depois, ainda não há uma estatística oficial de quantos
estão nessa situação no Brasil. "Isso poderia ser feito facilmente, por
meio das certidões de óbito onde consta se a pessoa deixou filho menor ou dos
serviços de verificação de óbito, por exemplo", diz o advogado Ariel de
Castro Alves, membro do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente.
Ao menos três projetos de lei discutem auxílios nacionais a esses
jovens. Um prevê pensão de R$ 1.100 até os 18 anos, outro cria um fundo
financeiro de amparo e o terceiro propõe um cadastro para que tenham prioridade
em programas sociais.
O governo federal também estuda um benefício mensal de até R$ 250 aos
órfãos da Covid que já fazem parte do Bolsa Família, segundo o jornal O Estado
de S. Paulo. Questionado, o Ministério da Cidadania apenas confirmou que
discute uma reformulação ampla do programa.
Enquanto a ajuda governamental tarda, projetos sociais tentam suprir
demandas tanto emergenciais quanto estruturais dessas crianças. É o caso da
campanha Eu Amo Meu Próximo, que distribui cestas básicas a famílias de 175
jovens do Amazonas que perderam mãe, pai ou ambos.
"Nosso objetivo é que eles sobrevivam, já que perderam quem dava o
sustento da casa. São famílias muito vulneráveis, que chegam através do
Conselho Tutelar ou de hospitais onde os pais faleceram", diz a educadora
Glauce Galucio, diretora do instituto responsável (Ipeds).
Outro que tem feito esse papel é o Mães que Acolhem, surgido de um grupo
de WhatsApp de três mães que resolveram ajudar Ryan e Ruan em Jundiaí. Três
meses depois, dezenas de voluntários de diversas áreas dão apoio
multidisciplinar e constante a 53 órfãos de até 21 anos, de oito cidades da
região.
"Vamos acompanhá-los por ao menos dois anos", afirma a
psicóloga Renata Zezza, uma das fundadoras. "Na tragédia de Brumadinho,
onde fui voluntária, todo mundo ajudou nos primeiros seis meses. Depois,
ninguém mais lembra que eles existem."
O menino Ruan, que tem um leve grau de autismo, passa por psicóloga,
fonoaudióloga, psicopedagoga e neuropedagoga gratuitamente e recebeu uma bolsa
na escola. Ryan, que está no último ano de pedagogia, ganhou um curso de
inglês, entre outros auxílios. A mãe era diarista, e o pai, motoboy.
Já o pedreiro Gerson, 52, e a cabeleireira Adriana Zafalon, 43,
conseguiram alugar uma casa maior com apoio de uma vaquinha do projeto, depois
que perderam a filha e tiveram que assumir os três netos junto aos outros dois
filhos.
Mayara, de 26 anos, foi ao hospital quando pegou Covid mas, preocupada
com as crianças, voltou para casa naquele sábado. Na segunda, teve um pouco de
falta de ar e melhorou. Na terça cedo, o pai a encontrou deitada num
colchãozinho no chão, já morta.
De repente, se viram com cinco crianças de um a 15 anos num apartamento
de dois quartos. "Tentei até montar uma caminha, mas a porta não
abria", conta ele. "Os dois mais velhos pararam a vida de criança
para pegar bebê no colo, lavar louça, lavar roupa".
Estão vivendo assim por enquanto, tentando conciliar a falta de emprego
com os cuidados. Nem sempre dá. "Cada vez que toca no assunto vêm os
choros, até falta de ar. Minha filha de nove anos caiu na realidade agora, meu
filho de 15 vive em crise, e a de três é a que mais dá trabalho, chamando a
mãe. Ela não sabe nem o que é isso."
A psicanalista Maya Balduino, que lida frequentemente com o luto,
explica que, até os três anos de idade, a morte é percebida apenas como
ausência. Até os cinco, normalmente, começa-se a assimilar o fim da vida. A
partir dos seis, vem a compreensão de que ele é inevitável e irreversível. A
consciência da finitude vem, em média, depois dos nove. "O ideal é
comunicar o falecimento às crianças explicando que a pessoa morreu e não
voltará", diz.
No caso da Covid, a morte vem como num acidente repentino. "Cada
dia é um processo novo, é muito atordoante. Num segundo você está bem, no outro
você se pega pensando se é verdade, em como poderia ser diferente. Vem a
vontade de chorar, gritar, espernear. Então eu grito, choro, esperneio. É
preciso passar por todas essas fases", aconselha Ryan.