A retirada de invasores e posseiros de uma terra
indígena no Pará feita sem o apoio das Forças Armadas foi marcada por tumulto e
bloqueio de estradas por parte das pessoas que estavam no território; pela
ausência de direcionamento às famílias, que ficaram pelas vilas vizinhas; e
pela retirada, sem apreensão, de cabeças de gado usadas por grileiros para
dominar a região.
No último dia 4, o Ministério da Defesa deixou de
atender um pedido da Polícia Federal para que as Forças Armadas auxiliassem a
complexa ação de retirada de invasores e gado da terra indígena
Trincheira/Bacajá, dos kayapós, na região de São Félix do Xingu (PA). A recusa
ocorreu mesmo com a proposta da PF de ressarcimento dos gastos dos militares
com o apoio logístico na região.
A operação já dura quatro semanas e ficou ainda
mais difícil em razão da falta de apoio logístico dos militares. O pedido feito
foi para que acampamentos militares fossem montados para os integrantes da PF e
da Força Nacional de Segurança Pública, vinculada ao Ministério da Justiça e
Segurança Pública. A polícia encerrou a participação na ação na terça-feira
(16). A Força Nacional prossegue na região.
A desintrusão é uma determinação do STF (Supremo
Tribunal Federal), em ação que pede a retirada de invasores em sete
territórios: Yanomami, Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau, Arariboia, Mundurucu, Kayapó e
Trincheira/Bacajá. O processo é relatado pelo ministro Luís Roberto Barroso,
que já deu decisões favoráveis à retirada.
A PF e a Força Nacional promoveram a retirada de
cerca de 200 famílias de posseiros da terra Trincheira/Bacajá, com bloqueios de
acessos, e de cerca de 600 cabeças de gado.
Tanto as pessoas quanto os animais ficaram pelas vilas
e terras vizinhas, segundo policiais que acompanham o desenrolar da operação.
Não houve cadastramento nem acompanhamento das
famílias pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).
Sobre o :ado, o plano inicial era a apreensão dos animais
pela Adepará (Agência de Defesa Agropecuária do Pará), em razão de
irregularidades sanitárias, como a falta de vacinas. Os distúrbios e protestos
feitos pelos posseiros impediram a apreensão, conforme policiais que monitoram
a operação.
Em nota, o Incra disse que não é responsável por
retirar ocupantes de terras indígenas:
“Compete à Funai (Fundação Nacional do Índio)
planejar, coordenar e executar as ações de identificação, remanejamento e
indenização (quando for o caso) de não indígenas dessas terras”, afirmou. “Os
não indígenas eventualmente identificados pela Funai como ocupantes de boa-fé
são passíveis de reassentamento, a partir de indicação da fundação ao Incra.”
Questionada sobre o que foi feito no território, a
Finai deu resposta. A Adepará disse que apenas presta apoio no direcionamento
da retirada dos animais e providencia um destino à carne.
“[O gado] seria destinado a um abatedouro com
registro no serviço oficial. Caso a carne esteja em condições de consumo, terá
essa finalidade. Caso não esteja, será destinado ao descarte”, afirmou, em
nota. O gado aparenta boas condições de saúde, mas apenas exames que “seriam
realizados no abatedouro” poderiam confirmar isso, conforme a Adepará.
As investigações da PF mostram que um grupo de
grileiros, com terras nas imediações, controla as invasões na terra indígena. A
estratégia consiste em ocupar espaços com gado e em vender glebas a posseiros
–estes são basicamente famílias pobres, atraídas por ofertas de lotes com
valores de R$ 5.000.
A necessidade de deixar a ocupação ilegal, sem
destino certo, levou ao bloqueio de estradas que dão acesso à terra indígena.
Os ramais são usados pelos posseiros e grileiros, e não são usados pelos
indígenas. Entre policiais, há o temor de que invasores e gado retornem ao
território tradicional, como já ocorreu uma vez.
Em novembro de 2021, uma ação de desintrusão foi
feita na mesma terra indígena. Foi a primeira ação do tipo no governo Jair
Bolsonaro (PL), que age contra a demarcação de novos territórios e a favor da
ocupação desses espaços com atividades como a mineração de ouro.
Os acessos também foram fechados em 2021, e houve
pedido para que as pessoas deixassem as áreas invadidas. Duas pontes foram
destruídas. Naquela ocasião, as cabeças de gado atribuídas a grileiros
permaneceram.
Na nova incursão no território, policiais
constataram que as pontes foram reconstruídas, e que as pessoas voltaram aos
locais invadidos. Com a nova retirada, as pontes foram destruídas outra vez.
O Ministério da Defesa disse ter informado a PF
sobre “possibilidade de apoio em data posterior”. A pasta afirmou, em nota à
reportagem no começo do mês, levar em conta a disponibilidade de recursos
financeiros e a “necessidade das medidas de preparação adequadas, por se tratar
de local isolado sem qualquer estrutura de suporte”.
A ausência das Forças Armadas em operações do tipo,
apesar dos pedidos por ajuda em logística, passou a ser constante,
especialmente o fornecimento de aeronaves para sobrevoos e acessos a áreas de
garimpo ilegal.
Investigadores que cuidam de inquéritos sobre
extração de ouro em terras indígenas afirmam que as Forças Armadas se recusam a
fornecer aeronaves para ações que tentam coibir o avanço da estrutura logística
mantida por quem explora a atividade ilegal.
(Transcrito da
Folha de S. Paulo, de 18/8/2022. Imagem: Reprodução Folhapress)