Por Mariana Tokarnia – Repórter da
Agência Brasil - Rio de Janeiro
“Ouviram do Ipiranga as margens plácidas de um povo heroico o brado
retumbante”. Assim começa o Hino
Nacional brasileiro, em alusão ao dia 7 de setembro de 1822, quando o
Dom Pedro I bradou: “Independência ou morte”, tornando o Brasil uma pátria
livre de Portugal. A história, no entanto, embora repetida e eternizada em
pinturas, livros e até mesmo no hino do país, não é tão simples assim, segundo
historiadoras entrevistados pela Agência Brasil. Não ocorreu em
apenas um dia e envolve muitas disputas, interesses, questões sociais e
econômicas que, de certa forma, perpetuam-se até os dias de hoje.
Professora Adriana Barreto diz que a
historiografia já usa o termo "independências do Brasil" - Clara
Barreto/Divulgação
“Além de ter sido um processo longo, de muitos anos, as lutas pela
independência – e esse é um ponto importante, por muito tempo se acreditou que
a independência do Brasil foi uma grande negociação intraelite, – obedeciam a
lógicas econômicas, políticas, sociais e demográficas próprias, particulares às
várias capitanias da América portuguesa. Só posteriormente essas capitanias se
tornariam uma unidade chamada Brasil. Hoje, a historiografia já usa até o termo
no plural, as independências do Brasil”, explica a historiadora Adriana
Barreto, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Naquela época, não havia estados, e o Brasil era dividido nas chamadas
capitanias, criadas pelo rei português D. João III em 1534. Esses 15 lotes de
terras foram entregues a pessoas de confiança da coroa responsáveis por
desenvolvê-las, sempre em prol de Portugal. O sistema vigorou até pouco antes
da data formal da independência, em 1822.
O Brasil, no entanto, após quase 300 anos da dominação portuguesa, prospera
economicamente e passa a ter uma elite local que deseja usufruir cada vez mais
da produção, sem precisar pagar impostos a Portugal. A própria coroa portuguesa
estava presente no Brasil desde 1808, quando a família real fugiu da Europa por
conta das invasões de Napoleão Bonaparte, o que distanciava ainda mais as
relações com Portugal.
Segundo a historiadora Wlamyra Albuquerque, professora da Universidade
Federal da Bahia (UFBA), na época, o Brasil se sustentava em dois pilares
fundamentais: por um lado a produção açucareira e do café e, por outro lado, a
escravidão. “Naquele momento estava na berlinda a manutenção de uma sociedade
escravista agrícola e que demandava uma independência, uma autonomia política
para fazer com que esses negócios continuassem funcionando, continuassem a ser
muito lucrativos. A ruptura com Portugal é um arranjo para fazer com que esse
território se transformasse em um país com liberdade econômica para continuar
fazendo valer esses negócios baseados na escravidão”, diz a historiadora,
que acrescenta: “Surgimos como nação para tentar manter os lucros com uma
economia muito pujante na época, que era a economia açucareira e do café
baseada no trabalho escravo.”
Adriana Barreto ressalta que não foram apenas as elites que tiveram um
papel importante nesse acordo de independência.
“A tese da ausência de lutas e de participação popular no processo de
independência do Brasil se enraizou muito na análise do que se passou no Rio de
Janeiro. As narrativas sempre destacavam as viagens e costuras políticas
realizadas por D. Pedro com as elites de São Paulo e Minas Gerais. Todavia, se
a gente foca sobre o que se passou nas ruas da cidade entre 1821 e 1822, é
possível ver uma participação popular incrível”, diz a historiadora.
Escolha da data
O Brasil tornou-se independente de Portugal, mas seguiu tendo como
imperador D. Pedro I e seguiu com a escravidão até 1888. A data de 7 setembro,
como conta Adriana Barreto, foi uma escolha. “Uma data concorrente era o 12 de
outubro, aniversário de D. Pedro. Foi nesta data que, também em 1822, ocorreu a
aclamação do príncipe D. Pedro como imperador do Brasil. Mas, com sua abdicação
ao trono, em abril de 1831, a partir de um movimento político liberal com forte
base popular, o 12 de outubro foi extinto, e o 7 de setembro se firmou como
data de fundação do Império do Brasil”, destaca.
Apesar da escolha de uma data, segundo as historiadoras entrevistadas, a
independência foi um processo que durou anos. Prova disso é a celebração
da Independência no dia 2 de julho, na Bahia. A data marca a expulsão, em 1823,
das tropas portuguesas que ainda resistiam à Independência declarada no ano
anterior, em um movimento que contou com a participação popular. Qualquer
autoridade lusitana remanescente foi extirpada do poder.
O imaginário em torno da data, de um brado retumbante, um povo heroico,
e, sobretudo, uma data capaz de unir toda a população, também foi uma
construção.
Quadro Independência ou Morte!, do pintor
Pedro Américo, no Museu do Ipiranga, na Vila Monumento - Rovena
Rosa/Arquivo/Agência Brasil
“É uma história branca. Indígenas não aparecem, população negra não
aparece. A própria ideia de povo está muito diluída, a gente não tem uma
história dinâmica e polifônica”, observa a historiadora Ynaê Lopes dos Santos,
professora da Universidade Federal Fluminense (UFF).
De acordo com Ynaê dos Santos (foto), é a partir da construção de
independência e da formação do Brasil como país que vão sendo criados
também os mitos de existência de uma sociedade pacífica, inviabilizando as
várias disputas e revoltas que marcam a história brasileira.
Esses elementos também reforçam o mito de uma democracia
racial no país, ou seja, que não existe preconceito por conta de raça, e que o
racismo, quando se manifesta, é algo individual.
“Essa construção permite o exercício de poder de um grupo que construiu
para si esse poder. O mito da democracia racial mantém a ordenação racista,
mantém todos os privilégios, naturalizando esses privilégios”, diz ela. “Esse 7
de Setembro é a construção de uma história muito branca e elitista e é
proposital.”
Para os indígenas, que já habitavam o Brasil antes mesmo de ele ser
chamado Brasil, a construção do imaginário do 7 de Setembro é ainda mais
excludente.
Marize Guarani vê processo de negação dos
povos indígenas - Tânia Rêgo/Agência Brasil
“Para falar do 7 de Setembro é fundamental a gente entender o que foi,
de 1500 até hoje, a construção de um país, que primeiro era colônia e, depois,
passa a ser um país na independência. Em todo esse período a gente vai ter uma
negação dos povos indígenas, vai construindo uma narrativa de que nós não temos
nada para oferecer”, diz a historiadora e professora Marize Guarani, uma das
fundadoras da Associação Indígena Aldeia Maracanã.
Segundo Ynaê dos Santos, todas essas questões precisam ser levadas em
consideração nas comemorações da independência do Brasil. “Eu acho que o 7 de
Setembro, por mais que seja uma data muito complicada, é um marco que ainda
funciona para explicar uma série de questões. O que eu acho que precisa ser
feito é um olhar crítico para essa data, entendendo que essa data não é fim do
processo, porque é assim que a gente entende a independência do Brasil, como se
começasse e terminasse no 7 de setembro. Ela é o início de um processo que vai
se desenrolar durante muitos meses e só vai terminar no dia 2 de julho”, diz.
“É fundamental também que, junto com essa compreensão mais processual,
traga outros sujeitos que participaram dessa história, para que a gente tenha
inclusive uma compreensão mais profunda do dinamismo da história brasileira”,
completa.
Edição: Juliana Andrade