Mapa do Império publicado em 1868 por Cândido Mendes de Almeida, futuro senador (Biblioteca do Senado) (Foto: )
Em 1850, há
173 anos completados em agosto, o estado do Amazonas foi criado a partir da
divisão do Pará. De acordo com o historiador Vitor Marcos Gregório, que é
professor do Instituto Federal do Paraná (IFPR) e fez uma tese de doutorado
sobre a criação das duas províncias, essa medida, no reinado de D. Pedro II,
foi motivada por fatores internacionais e domésticos.
De acordo
com ele, a Floresta Amazônica brasileira corria o risco de ser invadida pela
Inglaterra e pela França. As maiores potências militares da época sonhavam com
expandir as colônias da Guiana Inglesa e da Guiana Francesa até as margens do
Rio Amazonas, tomando terras do Brasil. Na época, o traçado das fronteiras
amazônicas ainda era nebuloso.
Mapa do
Império do Brasil, publicado no Atlas do Imperio do Brazil em 1868, onde já
consta a Província do Amazonas, desmembrada da Província do Grão Pará em 1850,
18 anos antes. Este é o primeiro atlas do Brasil e, portanto, um marco da
cartografia brasileira
Ao mesmo
tempo, os Estados Unidos, que já mostravam inclinação ao imperialismo,
pressionavam para que a navegação no Rio Amazonas fosse liberada para navios
estrangeiros, o que o governo brasileiro não aceitava. Temia-se que os
americanos, insatisfeitos, acabassem invadindo a Amazônia.
‘’O governo
imperial entendeu que a criação da província do Amazonas iria, por um lado,
estimular o povoamento dessa parte da Amazônia e, por outro, levar o poder
público e as forças de segurança para perto das fronteiras. Foi uma maneira de
proteger a integridade do território nacional’’, afirma Gregório.
Cabanagem
Mapa da
Província do Grão Pará, publicado no Atlas do Império do Brazil por Candido
Mendes (futuro senador), destinado à instrução pública do Império, com
especialidade á dos alunos do Imperial Collegio de Pedro II (grafia da época)
Na esfera
doméstica, pesou na decisão de dividir o Pará o trauma da Cabanagem, a maior
revolta social da história do Brasil, que explodiu em Belém em 1835 e só acabou
em 1840, com um saldo estimado de 40 mil mortos (em torno de 25% da população
da Amazônia).
Atribui-se
a longa duração da Cabanagem à vastidão territorial do Pará. Grande parte dos insurgentes
fugiu para o interior da província, de onde continuou conspirando contra o
governo. As autoridades paraenses não dispunham de meios para alcançar os
rebeldes embrenhados nos confins da Amazônia.
A criação
do Amazonas, portanto, não foi automática nem imediata. O projeto de lei teve
de ser discutido e aprovado pela Câmara e pelo Senado e sancionado pelo
imperador D. Pedro II. Concomitante com o processo de criação que ocorreu para
a criação do Paraná, emancipado de São Paulo.
Os
documentos do Arquivo do Senado mostram que, nos dois casos, os debates
parlamentares foram acirrados.
Na época, o
atual Amazonas correspondia à comarca do Rio Negro. Os defensores da
emancipação no Senado argumentaram que a comarca, incrustada na floresta,
ficava afastada demais da capital do Pará e só deixaria de ser um vazio
demográfico e econômico quando passasse a contar com um governo provincial
próprio.
Um desses
defensores foi o senador Paula Souza (SP), que afirmou: ‘’É certo que a comarca
do Rio Negro existe muito longe da capital da província e por isso lhe podem
faltar recursos, mormente não havendo ainda navegação por vapor. A comunicação
da capital do Pará a esse lugar é demasiadamente retardada. Creio que é de
muitos meses.’’
O senador
mineiro Carneiro Leão concordou: ‘’A grande distância que vai da Cidade do Pará
à cabeça da comarca do Rio Negro tem demorado todas as providências e feito com
que pouco se atenda às necessidades daquela comarca. Acontece muitas vezes que
um presidente [cargo equivalente ao de governador] do Pará comunica a sua posse
para aqueles lugares e, quando vem a resposta, o presidente já está mudado.’’
Quando
algum colega afirmou que criar instituições provinciais e contratar servidores
públicos custaria demais aos cofres imperiais, o senador Saturnino da Costa
Pereira (MT) pediu a palavra para rebater o argumento. Ele garantiu que os
gastos com a emancipação se pagariam em pouco tempo: ‘’Quem não semeia não pode
colher. Será mais um suprimento que tenha de fazer o Império enquanto as rendas
do Rio Negro não crescerem. Portugal avançou grossos capitais para engrandecer
e povoar o Brasil, que lhe era totalmente desconhecido. Portugal e nós, seus
descendentes, vemos o lucro que apareceu desse avanço de despesas. Sem essa
criação nova [a província do Amazonas], perder-se-á para sempre aquele precioso
território, para ser habitado por homens selvagens e feras das matas.’’
Indígenas
do povo ticuna na Amazônia em 1867 (Albert Frisch/Leibniz – Institut für
Laenderkunde/Instituto Moreira Salles)
Outro
defensor da criação do Amazonas, o senador Visconde de Abrantes (CE) disse que
a porção ocidental do Pará tinha condições de superar a decadência que amargava
no Império, já que vivera momentos áureos no passado: ‘’A comarca ou capitania
do Rio Negro, ainda em 1819, exportou o valor de 170 contos de réis fortes em
gêneros e produtos que passarei a mencionar: tabaco, salsa, café, cacau, cravo
fino, anil, quina, breu, óleo de copaíba, algodão em rama, manteiga de
tartaruga etc. Existiam vários estabelecimentos fabris, cujos produtos eram
exportados até para o estrangeiro. Havia cordas de muito valor e outros
artefatos, inclusive louça para o consumo da província do Pará. A maior parte
desses estabelecimentos não existe hoje. Por que, senhores? Porque o Rio Negro
não tem sido administrado.’’
Província
do Amazonas
Nesse
momento, pouco se exploravam as seringueiras. O ciclo da borracha, responsável
pelo renascimento da prosperidade amazônica, só ocorreria a partir da década de
1870, para alimentar as fábricas da Europa e dos Estados Unidos na Segunda
Revolução Industrial.
No Senado,
um parlamentar avaliou que seria inviável criar uma província com tão poucos
habitantes. O Visconde de Abrantes discordou: ‘’Não se trata de organizar uma
província em sertão absolutamente ermo. A comarca do Rio Negro, pela última
estatística, contém 23 mil habitantes livres e calcula-se que as tribos
indígenas excedem de 120 mil almas, sendo todas essas tribos de índole pacífica
e mui suscetíveis de civilização. Não me parece que deva ser o projeto
rejeitado só porque a população não é grande.’’
Recorrendo
a uma comparação, o senador prosseguiu: ‘’Quando foi criada a província de Mato
Grosso, qual era a sua população? A estatística atual dá para a população livre
de Mato Grosso 36 mil almas. E eu pergunto: qual seria a população de Mato
Grosso há 40 anos ou na época em que foi elevado em capitania geral ou em
província? Hoje deve ter duplicado. As mesmas circunstâncias que levaram o
poder de então a organizar ali uma província com tão mesquinha população são as
mesmas ou talvez menos poderosas que as que hoje aconselham a elevação do Rio
Negro.’’
Representação
enviada ao Senado pelos deputados provinciais do Pará em 1850 pedindo a
emancipação do Amazonas (Arquivo do Senado)
O contexto internacional
As tensões
internacionais também apareceram nos debates parlamentares durante a discussão
do projeto de criação da província do Amazonas. O senador Bernardo Pereira de
Vasconcelos (MG) apontou o perigo: ‘’Para mim, é indubitável que o governo
inglês tem por objetivo apoderar-se do gigante Amazonas e dentro de pouco tempo
expelir de suas margens os ribeirinhos, exercer a mais pesada inspeção em todos
os barcos, visitá-los, detê-los, capturá-los até a pretexto de negreiros e
assim acabar nossa navegação interna, como tem já acabado a de longo curso e a
de costa a costa. As folhas [jornais] inglesas não ocultam o pérfido pensamento
de seu governo. Elas asseveram que o Amazonas deve pertencer à Inglaterra.’’
O senador
Carneiro Leão alertou: ‘’Há pretensões sobre parte do território que atualmente
ainda está ocupada por posse, mas essa mesma posse desaparecerá se nós não a
tornarmos mais efetiva, procurando guarnecer esses pontos da nossa fronteira, e
se não pusermos ali uma administração local que mais depressa possa ser
instruída das tentativas de usurpação que se fizerem.’’
Segundo os
papéis históricos do Arquivo do Senado, o adversário mais ferrenho da criação
do Amazonas foi o senador Vergueiro (MG).
Além de
afirmar que a área não tinha população nem arrecadação tributária suficientes
para tornar-se autônoma, ele argumentou que a abertura de instituições e
repartições governamentais na pequena Vila da Barra do Rio Negro provocaria
efeitos colaterais nefastos na alta sociedade local: ‘’Talvez tenha reinado até
hoje a paz naquela comarca. Passando a província, hão de se devorar uns aos
outros os seus habitantes com intrigas, que é o que acontece nessas províncias
pequenas. Uma família quer preponderar e disso resultam rivalidades e depois desordens
continuadas, o que não acontece numa província que seja populosa e ao mesmo
tempo civilizada. Não sei do estado de civilização do Rio Negro, mas, a
avaliar-se a sua civilização pela sua localidade, suponho que não pode estar
muito adiantada.’’
Enquanto
estudavam o projeto de lei, os senadores receberam duas representações
remetidas por autoridades paraenses pedindo a criação do Amazonas — uma
assinada pelos vereadores da Câmara Municipal da Vila da Barra do Rio Negro e a
outra encaminhada pelos deputados da Assembleia Provincial do Pará.
Com o apoio
dos próprios paraenses, o projeto de divisão do Pará foi transformado em lei em
1850 sem enfrentar maiores dificuldades.
O atual
Paraná correspondia à comarca paulista de Curitiba e Paranaguá. Para os defensores
da emancipação, essa comarca deveria ser elevada a província por já ser
desenvolvida e povoada e ter renda suficiente para manter-se por conta própria
— argumento diametralmente oposto ao empregado pelos apoiadores da criação do
Amazonas.
Em 1850, o
senador Batista de Oliveira (CE) apresentou uma emenda ao projeto de lei de
emancipação do Amazonas prevendo a separação simultânea do Paraná. Num
discurso, ele apresentou seus motivos: ‘’Primeiramente, suponho eu, pelas
informações que tenho, que a comarca de Curitiba não só possui uma população
maior do que a do Alto Amazonas, como uma indústria mais desenvolvida do que
essa parte do território do Pará. Em segundo lugar, a comarca de Curitiba tem
um bom porto de mar em Paranaguá, o qual deve muito contribuir para a
prosperidade dessa nova província.’’
Ao lado do
porto, a grande fonte de renda na comarca de Curitiba e Paranaguá eram os
impostos cobrados do gado transportado do Rio Grande do Sul para São Paulo e
vendido para toda a província numa feira em Sorocaba. Os animais eram taxados
pelas autoridades paulistas assim que entravam no território da comarca.
Na
avaliação do senador Carneiro Leão, a região de Curitiba só conseguiria se
desenvolver plenamente depois de se separar da província de São Paulo. Ele
explicou que a emancipação ainda não havia acontecido porque os seus
representantes políticos não eram tão numerosos e poderosos quanto os das
demais comarcas paulistas. Ele disse: ‘’Um dos obstáculos à prosperidade da
comarca de Curitiba, que está apartada da grande massa da civilização, é a
pouca influência que ela tem nas eleições. Não tem meios de se pronunciar para
sua elevação a província porque, se na Assembleia Provincial há dois deputados
que pertençam a Curitiba, há 33 ou 34 pertencentes a outras localidades que
esmagam esse voto legal. Se recorre à Câmara [dos Deputados], raras vezes nela
se contempla um curitibano.’’
O senador
acrescentou: “Daí provém que, não obstante ser pela província de Curitiba que
se arrecada a maior parte da renda da província de São Paulo, ela tem estado
quase abandonada. O governo provincial não se ocupa daquela comarca. É por isso
que os seus habitantes desejam muito a criação de uma administração local que
se cure mais de perto dos seus interesses materiais.’’
Na direção
inversa da tomada pelos deputados provinciais do Pará, que apoiaram a criação
do Amazonas, a Assembleia Provincial de São Paulo enviou uma representação aos
senadores pedindo que não aprovassem a emancipação do Paraná.
Por causa
da oposição dos paulistas, a criação do Paraná foi mais difícil e demorada que
a do Amazonas. A divisão de São Paulo poderia ter sido aprovada junto com a do
Pará, em 1850, mas os debates no Parlamento se estenderam por mais tempo e a
aprovação só ocorreu três anos depois.
Pintura de
Pedro Américo, mostra D. Pedro II na cerimônia da Fala do Trono: num desses
discursos ao Parlamento, ele pediu a criação da província do São Francisco,
negada pelo Congresso Nacional
Vitor
Marcos Gregório entende que o processo de criação do Amazonas e do Paraná
mostra com clareza que o sistema político representativo, caracterizado por um
Poder Legislativo forte e atuante, funcionava plenamente no Brasil já no
período imperial: “Apesar de o país ser uma Monarquia e o imperador dispor do
Poder Moderador, o monarca não tinha poderes absolutos e ilimitados. A palavra
dele não era ordem. Isso era verdade na época do Antigo Regime, do absolutismo.
O Brasil colonial era uma propriedade particular do rei de Portugal, que podia
dividir e redividir o território ao seu bel-prazer. O Brasil imperial, não. D.
Pedro II chegou a pedir ao Parlamento a aprovação da província do São
Francisco, mas esse pedido nunca foi atendido. A palavra do partido que estava
no poder também não era ordem. O governo precisava negociar com o Senado e a
Câmara, que tinham liberdade para aprovar ou rejeitar os projetos de lei.
Ele
prossegue: “Se compararmos um mapa do Brasil imperial com um mapa atual,
veremos que eles são bastante parecidos. Isso ocorre porque a criação de novas
unidades subnacionais não é algo simples e exige muito debate político e
negociação. Os parlamentares sempre evitaram mudar no mapa porque sabem que,
quando dividem alguma província ou estado, abre-se espaço para que outras
unidades passem pelo mesmo processo e a próxima a ser diminuída seja a deles
próprios. A tendência é à conservação do território.’’
No Império,
os parlamentares também analisaram projetos que previam a criação das
províncias do Tocantins, de Minas do Sul, de Minas Novas e do Oiapóquia
(correspondente ao atual Amapá). Sem o apoio do Parlamento, nenhum deles
vingou.
Gregório
afirma que, quando olhamos o mapa do Brasil de hoje, o traçado nos parece
natural. Segundo ele, porém, nada tem de espontâneo: “Essa sensação de
naturalidade vem, em larga medida, do antigo discurso político que transformou
o território, aquele “do Oiapoque ao Chuí”, num elemento decisivo da nossa
identidade brasileira, do nosso nacionalismo. Esse discurso também ajuda a
explicar a tendência à conservação do traçado do território brasileiro. Quando
conhecemos a história da criação do Amazonas, do Paraná e de qualquer outro
estado, entendemos que nada foi natural ou fruto do acaso. O território que
temos hoje é resultado de cálculos, estratégias, negociações, escolhas,
decisões’’, registra.
Biblioteca
do Senado Federal
Carajás e Tapajós
A última
tentativa de criação de novos estados no Brasil ocorreu em consulta
plebiscitária em 2010, autorizado por um projeto de decreto legislativo
aprovado no Congresso Nacional, que consultou toda a população do Pará, a se
manifestar sim ou não, sobre a criação de mais dois estados: o Carajás, na
porção Sul/Sudeste e o Tapajós, na região Oeste.
Majoritariamente,
e diferente das outras duas vezes anteriores quando foram criados, a partir do
Pará, o Estado do Amazonas (1850) e o Estado do Amapá (1988), junto com a
promulgação da nova Constituição Federal, os leitores do Pará disseram não a
uma nova divisão do Pará.
* Reportagem: Val-André Mutran – Correspondente
do Blog do Zé Dudu em Brasília.