A
plataforma Prova sob Suspeita, lançada nesta semana pelo Instituto de Defesa do
Direito de Defesa (IDDD)
e que reúne informações sobre provas criminais no país, revela uma dura
realidade do sistema de Justiça brasileiro. “A falta de provas confiáveis faz
com que o processo criminal no país falhe em entregar à Justiça vítimas e
pessoas acusadas, em especial da população negra”, afirma a advogada Marina
Dias, diretora executiva do IDDD.
Com
diversas publicações sobre o tema, o site contribui para o entendimento de como
as abordagens, o testemunho policial e o reconhecimento de suspeitos,
contaminados pelo racismo, podem resultar em condenações injustas.
O IDDD
ressalta que, em grande medida, isso ocorre porque atualmente o processo
criminal no país depende de provas escassas e frágeis, produzidas com base na
memória e marcadas pelo racismo. A entidade acrescenta que, em muitos casos, a
palavra de uma única pessoa – em geral, da vítima ou do policial – ou um
reconhecimento fotográfico irregular, como no caso dos álbuns de suspeitos, é
suficiente para fundamentar a condenação.
Segundo
Marina, a consolidação da plataforma pretende colocar uma lupa nas questões
estruturais do sistema de Justiça criminal, como o racismo, além de disseminar
conhecimento. “Temos uma produção e valoração da prova que é muito frágil, com
uma série de deficiências, tanto do ponto de vista técnico como também
contaminada de ilegalidades. A ideia é justamente que possamos compartilhar
essa informação, dar visibilidade, trazer questões importantes, para o maior
número de pessoas.”
Além disso,
magistrados desconsideram evidências científicas e regras processuais para a
produção de provas, e ajudam a movimentar sentenças que têm como maior alvo a
população negra e periférica. “O Judiciário tem responsabilidade muito grande
ao chancelar ilegalidades cometidas pela polícia, ao aceitar provas que foram
produzidas de forma ilegal, ao repetir essas provas perante o processo penal”,
disse.
A advogada
explica que, quando um reconhecimento é feito de maneira ilegal – com exibição
de apenas uma fotografia ou apenas de uma pessoa, por exemplo -, ele já
contamina a memória da testemunha ou da vítima. “Se isso aconteceu, a chance de
ela confirmar esse reconhecimento, que já foi feito de maneira ilegal, [perante
o juiz] é tremenda.”
No contexto
da reparação, ela aponta a importância da responsabilização do Judiciário em
casos de injustiças. “Temos o caso Paulo, do IDDD, em que o rapaz foi acusado
em 62 processos, todos por reconhecimentos fotográficos, sendo que ele nenhuma
vez foi chamado à delegacia para ser reconhecido. É um caso em que o STJ
[Superior Tribunal de Justiça] reconheceu uma violação sistêmica. Precisamos
pensar em como reparar uma pessoa que ficou presa mais de três anos em razão de
uma violação absolutamente tremenda do sistema de Justiça Criminal”.
Para evitar
a repetição das violações, Marina cita capacitações e formações para juízes,
promotores, policiais, delegados, além de melhores condições para a
investigação policial com objetivo de desmantelamento do crime, em vez do foco
em policiamento ostensivo. “Temos uma política criminal e de segurança pública
totalmente focada no policiamento ostensivo no Brasil. Grande parte dos
processos criminais começa a partir de uma prisão em flagrante, que se dá
normalmente no policiamento ostensivo”, disse.
Ela explica
que essa abordagem é extremamente autoritária e acaba recaindo sobre corpos
negros. “São as pessoas negras as mais abordadas, então se existe
sobrerrepresentação no sistema criminal de pessoas negras, muito se dá em razão
do fato de que são elas as mais abordadas pelas polícias”, enfatizou.
A advogada
ressalta que são diversos os elementos que compõem essa fragilidade das provas.
“Tem a questão do testemunho policial, por exemplo, que tem peso gigantesco,
principalmente nos crimes tipificados na lei de drogas. Existe uma ideia dos
juízes, uma crença na versão do policial, de que eles estão no cumprimento do
dever legal, então têm fé pública”, observa.
“Há uma
crença também de que eles não têm interesse na prisão de pessoas inocentes, de
que têm um saber [técnico] ali por estarem nas ruas. Tudo isso contribui para
uma prova que é parcial, porque é óbvio que o policial tem interesse no
desdobramento daquela operação que ele fez. E o policial, como qualquer outra
pessoa, também é afetado pela depreciação da memória”, afirma Marina.
A
plataforma contempla textos e vídeos com entrevistas de especialistas do Brasil
e do exterior, referências na problemática das provas dependentes da memória;
histórias reais de pessoas impactadas por condenações injustas e arbitrárias;
artigos e entrevistas em texto com especialistas e vozes relevantes do direito
e da sociedade civil; pesquisas e relatórios que colocam o processo de produção
de provas no centro da agenda.
O projeto
Prova sob Suspeita, que teve início em 2018, tem o objetivo de contribuir para
o aprimoramento na produção e na análise de provas, a fim de reduzir os riscos
de decisões judiciais equivocadas e arbitrárias. A plataforma sistematiza a
produção de conteúdo sobre o tema, mas a entidade já promove ações desde o
começo do projeto. As frentes de atuação do projeto são formação e
sensibilização dos atores do sistema de Justiça; aprimoramento da legislação
brasileira e litígio estratégico, para criação de nova jurisprudência sobre a
matéria.
(Agência Brasil)