O ambiente macabro em que a múmia de Lênin é mantida há um século (Foto: )
Num misto
escalafobético de culto à imortalidade e apego eterno ao personalismo do poder:
do corpo, da alma e dos governados, preconizado desde tempos imemoriais pela
civilização egípcia, como prova farta documentação conhecida como “O Livro dos
Mortos”, o ditador da Rússia, Vladimir Putin, voltou a afirmar neste domingo
(21), um século após a morte do xará, espalhafatosamente comemorada em Moscou
hoje, Vladimir Ilyich Ulyanov, mais conhecido como Vladimir Lênin, que não há
qualquer possibilidade da múmia ser enterrada, como recente pesquisa apontou
ser a vontade da maioria da população do país.
Um papiro
de 15 metros, do Antigo Egito, contendo seções do “Livro dos Mortos”, foi
descoberto em Saqqara. Esse é o primeiro papiro completo do “Livro dos Mortos”
descoberto em 100 anos
Putin não é
o único lunático de plantão quando o assunto é o personalismo em prol da
manutenção do poder, mesmo ao custo anual de R$ 1 milhão, ou US$ 200 mil, que
oneram os cofres públicos russos, que é pago, agora se sabe, contra a vontade
dos russos, ano após ano, desde 1924.
Aqui perto,
Nicolás Maduro, o ditador da Venezuela, fez de tudo para recriar a mal
assombrada ideia de manter, intocado, como se estivesse “dormindo”, o camarada
Hugo Chávez, declarado “morto” em 5 março de 2013.
A
incompetência, no caso da Venezuela, foi justificado pelo pupilo, como algo
“fora do alcance” e por “razões técnicas”, como sempre ocorre em qualquer caso
que planos de presidentes despreparados dá errado. A saída, em todos os casos,
sempre é culpar alguém pela falência de algo ou alguma coisa.
No caso
venezuelano, a coisa toda parece mais uma “bananada mal batida”. Após a
declaração oficial da passagem “desta”, para a “melhor”, feita em 5 de março,
da morte do autoproclamado líder Hugo Chávez, um militar golpista obcecado pelo
que batizou de “bolivarianismo’’, restou ao sucessor telegrafar a culpa ao
entorno próximo.
No dia do
fato, as agências de notícias publicaram: “O corpo de Hugo Chávez pode não ser
embalsamado, como já tinha sido anunciado pelo presidente interino da
Venezuela, Nicolás Maduro. Segundo ele, cientistas russos e alemães foram
chamados para fazer o procedimento, mas alegaram que o processo deveria ter
começado antes para que fosse realizado com sucesso”.
Há um
século, no outro lado do mundo, em um dos locais mais conhecidos do planeta, a
Praça Vermelha, em Moscou, uma edificação por vezes passa despercebida por
turistas e por quem visita a capital russa por outras razões. Mas ali, aos pés
dos muros do Kremlin, está aquele que talvez seja o maior símbolo existente dos
tempos da União Soviética (URSS): o corpo embalsamado de Vladimir Lênin, um dos
principais responsáveis por tramar e executar a revolução bolchevique, cuja
morte completa 100 anos neste domingo.
Primeiro
dia do velório de Lênin, sem prazo para acabar
Logo depois
de ser declarado morto em Gorki, em 21 de janeiro de 1924, aos 53 anos, o corpo
do líder da Revolução de Outubro de 1917, foi preparado para um grande funeral
em Moscou, que reuniu cerca de 500 mil pessoas. Naquele momento, a ideia era
realizar apenas os procedimentos usuais que permitissem um velório de alguns
dias antes que ele fosse sepultado.
Passaram-se
56 dias desde a morte até que fosse tomada uma decisão para preservar o corpo
por mais tempo: inicialmente, a ideia era congelá-lo, o que não impediria que
continuasse a sofrer decomposição, embora a um ritmo mais lento. Depois, veio
uma sugestão mais radical: o embalsamamento, em um processo químico que
permitiria pausar o momento da morte para sempre — ou enquanto a ciência
permitir.
À moda
egípcia, mas com tecnologia
Inicialmente,
mais de 200 pessoas trabalharam na operação: órgãos internos foram retirados —
seu cérebro foi levado para estudos adicionais para analisar suas “capacidades
excepcionais”, e alguns fragmentos ainda estão no Centro de Neurologia da
Academia Russa de Ciências.
Prevaleceu
nas pessoas com poder de decisão naqueles dias, uma “epidemia de morbidez” que
rapidamente contaminou aquela gente. Pele, ossos e tecidos foram preservados, e
a cada 18 meses o corpo passa por uma nova rotina de limpeza e embalsamamento.
Até hoje, todo o processo é mantido em sigilo, e os responsáveis não
responderam aos pedidos de qualquer tipo de indagação.
O maior
genocida de todos os tempos, Josef Stalin é velado pelos compatriotas
O mausoléu
foi aberto ao público em 1º de agosto de 1924, inicialmente em uma estrutura
provisória, e em 1930 o local tomou as formas atuais, com as inconfundíveis
paredes de granito e mármore. O nome “Lênin”, no alfabeto cirílico, encara a
Praça Vermelha, hoje tomada por anúncios de marcas de todos os tipos, como um
lembrete do passado comunista.
“A múmia de
Lênin não será enterrada”, determina, Vladimir Putin
Desde
então, o corpo foi movido dali apenas uma vez, em 1941, durante a Segunda
Guerra Mundial, ou Grande Guerra Patriótica, quando a capital russa foi
atingida pelos bombardeios da Alemanha nazista. Lênin ficou na cidade de
Tyumen, na Sibéria, até o fim do conflito, quando o mausoléu foi reaberto.
Por cerca
de oito anos, Lênin teve companhia: Josef Stalin, que comandou a URSS desde
1924 até sua morte, em 1953. O corpo do georgiano de Gori que conduziu o
governo durante a Segunda Guerra e que foi acusado por inúmeros massacres,
perseguições e hoje é considerado o maior genocida da história humana, foi
embalsamado segundo o mesmo processo, e multidões seguiram seu funeral até a
Praça Vermelha.
O corpo
embalsamado de Stalin foi expulso do Mausoléu de Lênin
Contudo, os
tempos eram outros: o novo chefe do Partido Comunista, Nikita Kruschev, tinha
como pilar a desestalinização da URSS. Em 1961, como parte desse processo, Dora
Abramovna Lazurkina, uma integrante do partido, disse em uma reunião ter
conversado com Lênin em sonho, e que o líder afirmou não querer a seu lado
“alguém que fez tanto mal ao partido”. Apesar de a URSS ser um Estado ateu, o
“desejo” foi atendido, e Stalin, sepultado no cemitério localizado ao lado dos
muros do Kremlin.
Três anos depois, Kruschev seria derrubado em um golpe palaciano
Sem câmeras
e celulares
Quem deseja
visitar o corpo de Lênin precisa passar por uma inspeção de segurança que veta
a entrada de câmeras e celulares. A solenidade no ar remete aos tempos em que a
bandeira vermelha, com a foice e o martelo, tremulava a poucos metros dali, e a
imagem que surge quando se adentra o mausoléu faz questionar, mesmo que por
alguns instantes, em que ano se está.
Múmia de
Lênin
Na noite de
25 de dezembro de 1991, quando a URSS chegou ao fim, novos países surgiram e o
sistema comunista deu lugar ao capitalismo, por décadas considerado um inimigo
mortal. “Controle” era um conceito abstrato.
Novos
tempos
Enquanto
redes de fast-food americanas e cassinos pipocaram pela capital russa, uma
questão surgiu: o que fazer com o corpo de Lênin e, principalmente, quem pagará
pela manutenção? Novos líderes democráticos defenderam que o corpo fosse
enterrado imediatamente, seguindo uma rotina de derrubada de antigos símbolos
do regime. Mas uma parte da população e do meio político tradicional se opôs.
Lênin e
Stalin
Três
décadas após fim da URSS, Rússia não superou trauma da transição econômica e da
perda de poder. “Muitas pessoas foram para a Praça Vermelha protestar contra
essa blasfêmia”, disse ao Moscow Times, em 2016, Yevgeny Dorovin, deputado e
por muito tempo responsável pela manutenção do memorial. “Felizmente, o
comandante da guarnição do Kremlin acalmou a todos, dizendo que o mausoléu
estava a salvo”, numa demonstração inequívoca que o combustível de lunáticos
não tem tempo para acabar.
Em 2016, um
relatório do governo russo revelou que o custo anual para manter o corpo
embalsamado era de 13 milhões de rublos, à época algo como R$ 650 mil reais ou
US$ 200 mil, um valor questionado por liberais que querem pôr fim ao gasto, e
mesmo por comunistas que dizem que o líder soviético não gostaria de ser
eternizado como um “ídolo”.
Pesquisas
dos últimos anos mostram que mais de 60% dos russos querem que ele seja
enterrado, mas o presidente Vladimir Putin sinalizou, em 2019, que isso não
acontecerá tão cedo — se é que será algum dia.
— Não
devemos tocar nisso [enterro de Lênin] enquanto ainda houver pessoas que
conectem suas vidas com isso, com as conquistas do passado, dos anos soviéticos
— disse o presidente, que hoje não esconde suas muitas divergências com o
pensamento leninista, inclusive sobre a Ucrânia.
Múmias de
ditadores virou moda
Lênin não é
o único líder comunista embalsamado. Na China, Mao Tsé-tung está em um memorial
em Pequim. Na Coreia do Norte, o Palácio do Sol Kumsusan guarda os corpos de
Kim Il-sung e Kim Jong-il, em Pyongyang, e, no Vietnã, Ho Chi Minh está em um
memorial que leva seu nome, em Hanói. Em 2013, o governo da Venezuela sinalizou
que o corpo de Hugo Chávez, morto naquele mesmo ano, também seria embalsamado,
mas o plano foi abandonado depois que especialistas russos apontaram que o
processo seria impossível diante de uma série de “questões técnicas”.
Mausoléu de
JK, em Brasília. A abstração de Niemeyer da foice e do martelo para que não
fique dúvidas
O
personalismo não é apenas de lunáticos comunistas, mas essa gente conseguiu
também, um Mausoléu para Juscelino Kubitschek de Oliveira — o JK —, acusado até
hoje de ser um “comunista de largo costado”.
* Reportagem: Val-André Mutran – Correspondente
do Blog do Zé Dudu em Brasília.